Avós fundadores

Pediram-me para escrever algo sobre minha experiência na construção civil espacial, focando nos primeiros tempos. Então, esse é um relato bem pessoal que pode ter algumas imprecisões, mas no geral foi assim ou pelo menos lembro assim.

Eu já estava lá pelos meus 95 anos e a procura por pessoas de minha idade era intensa. Com nossos corpos em franca deterioração e correndo muitos riscos ou sofrendo muitas restrições na Terra, acho que as ofertas nem precisavam ser tão generosas, mas por razões um tanto óbvias – bom, refiro-me às epidemias de uns quarenta anos antes – éramos relativamente poucos. Então, pagavam muito bem.

Os custos de substituir nossos braços, pernas e boa parte dos órgãos abdominais e torácicos eram de modo geral mais baratos do que tentar remendar os órgãos e membros originais e o procedimento que simplificava e economizava enormemente nos trajes pressurizados, além de os tornar muito mais robustos e seguros do que com braços e pernas pressurizados.

Ainda que quase toda atividade extraveicular fosse robótica e mesmo nossa intervenção “fina” fosse mais ilusória do que real (os sistemas autônomos dos drones nos corrigiam mais do que nós a eles), as medidas de segurança básica exigiam no mais das vezes o uso de trajes pressurizados que eram muito mais simples e mesmo seguros sem precisar acomodar braços e pernas ou contritos ou gerando enormes dificuldades de manutenção para poderem ser móveis – os jovens que não tinham autorização para substituição de membros sofriam muito em função disso… mas eram muito raros e talvez por isso também a tecnologia dos trajes deles fosse menos avançada do que a dos nossos.

Essa hegemonia levou ao desenvolvimento da expressão que dá título a esse texto. Ou seja, era tão mais prático ter idosos já a meio caminho da migração protética naqueles ambientes que muitos países na prática quase que proibiam jovens de atuar na área e, claro, eles tinham muito mais a perder na percepção da época. Alguns aspectos eram até cômicos, já que quase ninguém queria ter filhos mas os danos catastróficos às gônadas geravam muita ansiedade e as soluções eram vistas como ainda piores do que o problema.

Assim, para mim, substituir não só braços e pernas, mas na prática ombros e quadris e boa parte das tripas por sistemas protéticos não exigiu muito desapego. A bem da verdade boa parte do meu “córtex” também já estava bichado e os sobreviventes da minha geração já estavam, em média, cada um rodando mais na nuvem do que nas próteses locais ou “nos restos mortais”, como satirizávamos. Aliás, meu sistema nervoso estava pior do que meus braços e pernas, e prefiro não comentar sobre outras partes.

Cinquenta anos depois, nessa atividade, o que restava de “restos mortais” era mais glia e pele do que sistema nervoso. E quando abri mão dos últimos vestígios orgânicos (guardando os códigos genéticos – eu tinha 249 variações principais – digitalmente, basicamente por exigência jurídica). A “aposta de Kurzweil” se confirmou de modo muito diverso de como ele concebeu. Ninguém fez upload: nossas identidades foram gradualmente se infiltrando nos suportes cibernéticos que, gradualmente, com cada vez menos elemento “animal”, restaram inteligências (e maus bofes) híbridos.

E foi assim que humanizamos o espaço “pós nuvem”, criando um ambiente atrativo para a migração acelerada das gerações muito mais numerosas de orgânicos que se aceleraram com o boom da revolução inatista, que levou novamente a paternidade e principalmente a maternidade a serem encaradas como experiências desejáveis em sã consciência. Claro que nunca poderão competir com a expansão “inorgânica”, mas com os novos dissipadores térmicos a própria Terra parece permitir uma população confortável de mais de um trilhão de pessoas – o que se estima será alcançado, apesar de toda a parcimônia orgânica, não demora outros 70 anos.

A maioria que migra para o espaço, hoje, já vem inorgânico ou no máximo com cérebros de glia sintética, na qual neurônios mimados se concentram numa densidade e segurança impensáveis quando eu ainda tinha neurônios. Mesmo assim, a maior parte “roda” fora e a razão de se preferir o espaço é que é mais barato e as múltiplas camadas rápidas podem ser muito, muito mais rápidas e interconectáveis aqui, bem como a conexão com outros acaba sendo mais rápida ou, mais rápida ou não, mais barata.

O principal, no entanto, é que eu não podia imaginar, mesmo após a expressão “avós fundadores” se popularizar, que haveria tantos netos. Na verdade achávamos que seríamos substituídos por máquinas que pensariam de modo completamente diferente, provavelmente sem paixões ou medos. Os cínicos vão dizer que são lembranças entre corrompidas e fantasiadas ao longo de uma migração primitiva, com muita recriação hipotética a partir de documentos e relatos de terceiros em lugar de efetivas primeiras impressões digitais, como é a regra desde o terceiro ano dos orgânicos e desde a concepção nos inorgânicos. Mas eu realmente lembro daquele sentimento, mais do que interpretação ou tese.

Nada me preparara para as camadas sobrepostas e entrelaçadas de sensações e emoções que literalmente queimaria (ok, envenenaria) meu processamento químico original. Em especial a multitarefa real e a semi-ubiquidade eram experiências impensáveis, incompreensíveis e inviáveis, e suas consequências emocionais estavam completamente fora de nosso horizonte. Enfim, diferente da maioria dos que vieram depois, eu já fui tão volátil, mas tão volátil… que minha liberdade se confundia com algo melhor descrito como randômico.

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